segunda-feira, 16 de julho de 2018

Placebo

Dinheiro pra viver.
Veneno pra comer.
Petróleo pra se mover.
Fumaça pra produzir.
Plástico pra embalar.
Arma pra punir.
Grades pra ensinar.
Marcas pro status.
Lâminas para os pelos.
Peso para os músculos.
Dietas pra emagrecer.
Tecnologia pra (não) conversar.
Imagem pra (não) conhecer.
Religião pra iludir.
Sexo pra saciar.
Hormônios pra não nascer.
Álcool pra esquecer.
Cápsulas pra emagrecer.
Nicotina pra nostalgia.
Remédios pra matar sintomas.
Drogas pra alegria.
A vida transgênica,
Transgredi:
Tirei os anéis para lembrar que ficam-se os dedos.
Despi-me da seda pra sentir a maciez da pele.
Quebrei o perfume pra sentir os cheiros.
Lavei o pó para rever os poros.
Apaguei as lâmpadas para enxergar o brilho.
Desliguei os barulhos para ouvir os sons.
Calei-me para conseguir me ouvir.
Abri mais de mim para perceber mais do outro.
Guardei restos para colher fresco.
Comi vida para deixar vivo.
Pus o pé pra fora para encontrar o lar.
Andei pra trás para ir a frente.
Desenterrei passado para construir futuro.

(GB - 20)

Cálice

É sagrado que transborda em vermelho: 
A cor da força.
O seio carrega um santuário.

Seu corpo é portal,
É maternal,
Manifestação do grande ciclo natural.


Intuição guia como a lua,
Fertilidade que germina como a Terra
Que também é mãe,
Força da criação.
Capaz de gerar,
De abrir,
De exalar.


É a ligação
Do mundo sensível 
Ao sagrado em si
E ancestralidade
Manifesta no gene, 
No útero.


Gaia, Artemis, Oxum,
Frigg, Isis, Diana, Yemanjá
Ixchel, Atena, Lakshmi,
Juno, Hera, Iansã, Perséfone:
Que todas guiem nosso passo
Nosso grito,
Nossa força,
Nossa garra.


Pois a luta é sagrada
E reunidas
Geramos,
Realizamos
E transformamos
Tudo o que tocamos.


(GB - 19)

Flama

Fogo é éter que,  
Ao medo de não ser eterno, 
Alimento de longe.
Transporto o ar que inside
Criando faísca que sutil acende, 
Se arrisca e, 
Do vermelho ao cinza, 
Se apaga. 

Ouviu o chamado das chamas
Pediu pra que a lava a lavasse.
E junto à fogueira, 
Crepitou, 
Como quem chama.

(GB - 20)

Flore

Água flui entre pedras 
Abre caminho
Constrói ninhos
Redemoinhos
Então os musgos
Criam refúgios
Vida pulsa
Energia aflora
É coração
É palpitação
É liquefeito cristal
Combustível tal
Que não se esgota
Cai na força
Como um grito pra parar
De afugentar
A mãe que acolhe
E a vastidão que flore
Com vida
Coração
Imersão
Imensidão

(GB - 19)

Pasto

O tempo passa e tudo pasta.
Derruba a vida abaixo: vira pasto.
Água, água, pisa, pisa e seca tudo.
Deserto fica e eu me mudo.

O fogo pega, incêndio vasto,
Tudo vira pasto.
Abate o sangue,
Hormônio corre no vermelho,
Tinge do mangue até a mata por inteiro.

A água some
E a gente come
Morte na brasa, é certeiro.
Em fevereiro é a hora da colheita,
Aceita que a cana só se colhe se queimar.

No mar veneno, boia a soja e o milho
Que o filho se lambuza depois de desempacotar.
Aqui tem plástico na comida, no lençol freático,
Na avenida e no estômago do animal aquático.
Prefira alumínio no sangue do que ficar a transpirar.

No ar inspiro as letras sujas da aula de química
E banho de enxofre tem lá fora,
Na chuva é só se molhar.
Vamos beber chorume,
Mas não posso chorar,
Nem tentar mudar o costume,
Se não, ninguém vai me aturar.

(GB - 19)

Inverno

No inverno do meu inverso, 
Encontrei o inferno. 
Escrevi recados para o frio, 
Pendurei em galhos, 
Mas o inverno é hostil. 

Natureza morta. 

Quando se aproxima, 
Não sei como respirar, 
O ar é pesado e sai visível, 
Materializando-se. 

Uma réstia de vermelho no breu. 

Me embrenhei em fios e raizes, 
Espero o abraço que não chega, 
O aconchego que aqueça e não esmoreça. 
Apareça! 
Mas o inverno só esvazia.

O calor entorpece o incômodo, 
É fácil. 
Pisei descalça pra sentir, 
Se é pra sentir, agora vou sentir. 
Se não há fogo, 
O inverno que vai aquecer meu inferno. 

O frio é ruim, nele eu sinto, 
Me sinto. 
Vento gélido que preenche os poros, 
Levanta os pelos. 

Nesse inverno fiz o inverso, 
Fiquei descalça, quis sentir... 
Pé no chão frio. 
Mas o frio amorteceu. 
Amorteceu. 
A morte aqueceu.

(GB - 20)

Inferno Astral

Gosto de nostalgia:
O inferno astral de se encontrar
Sozinha em si.

Só.

E ter uma vastidão de si 
Pra mergulhar 
E achar vazio.

Perseguida e observada 
Pelo silêncio,
Pelo eu passado
À espreita 
Esperando uma brecha,
Espiando pela fresta
Do silêncio.

Tudo vira barulho,
Tudo vira lembrança,
Tudo está aqui.
A memória é escrita no ar
A ferro e fogo
Agora já cinzenta,
Mas presente.

Você tenta fugir,
Fingir,
Mas nunca escapa de si.

(GB - 20)

Polaroid

Me revele
E releve
Meu jeito leve
Como papel
Faço um papel
Em contraste
Brilho e cor
Luz e sombra
Impresso e estático
Às vezes assombra
Às vezes apaga
Às vezes ofusca
Mas mostrou
E revelou

(GB - 19)

Chuva

Chuva vem
Para lembrar
O quanto de mim tem 
Em um pingo deste mar
Que escorre pela janela
Ao findar a tarde
Fundindo as cores.

Diga, quem é ela?
É menina?
É mulher?
É serena?
Melancolia?
É nostalgia?
É epifania?

Percebeu que a vida é trilho
E o universo, maquinista.
Confia e segue no vagão
Do instintivo coração
Tendo como paisagem
Outras passagens,
Outras lembranças.

O cinza céu enfumaçou-se,
Escorrem memórias entre as cortinas,
Lambe o vidro que separa o fora.
E o dentro, um buraco
E também um barco
Que leva ao próximo porto,
Assim eu parto.

Parti,
Parti-me ao meio
Como em um parto
Chegarei
E esperarei
A chuva passar.

(GB - 19)

Vishuddha

Sinto a força,
Pulso e grito.
Flor querendo sair pela garganta,
Esperança que carrego no que fito
Ou desespero do minuto a passar.
Esperar ou cantar?
Escrever ou viajar
No bamboleio da vontade de dançar?
Construo, então, frases fora do prumo:
É energia criativa a socar
O estômago, 
Escalando a faringe,
Querendo sair pela garganta.
Num palco, pular até cair e soar.
O que a inspiração quer trazer
Que a expiração não traz?
Não é matéria, nem liquefeita, não veio à mão.
É como uma penujem, uma nuvem, um devaneio...
Talvez a loucura dando a desculpa de estar a artistar-se.

(GB - 19)

Passione

Na mesa do bar,
De asfalto cheiro no ar,
Reflexo de luzes 
E do luar em seu olhar.
Fuma e discute 
Em silêncio consigo:
Arquitetura neoclássica, barroca ou romântica?
Deixa eu ser romântica com você
E te levar pra conhecer
Meu congar
Minha filosofia
Não linear,
Em momentos de antropofagia,
Navegar.
No óssio de se adaptar,
Vamos nos sentir mal
Por viver num puro edonismo
De efemeridades 
Dentro da liquefeita sociedade.
Peço que que condense um pouco
Nosso amar
Para não escapar
Apenas pairar
No presente ar.

(GB - 19)

Ar-te

No reflexo da luz 
Das gotículas de vapor 
Que se colam 
E expelem aos poros.

Nos dedos batendo,
Dançando no couro do tambor. 
Nos pés batendo no chão, 
No canto ancestral entoado. 

No ler de textos, 
Na fumaça densa, 
No cheiro de filosofia, 
Está encravada a ancestralidade 
Que traz nossos fantasmas, 
Os fantasmas que fomos nós. 

Dionísio em luz apolínea. 
Evocar piratas é nossa especialidade 
Pelo movimento de ciscos na vibração dos fantasmas, 
No ar de Vangogh. 

A arte come as paredes 
Em um movimento antropofágico, 
Arte encravada no cimento e cal 
Comendo e expelindo tintura. 

A resistência está impregnada 
Até no concreto do chão suspenso
Que aguenta os saltos de artistas
Que resistem como chão. 
Artistas saindo de dentro das paredes. 

(GB - 19)

Laila

Como se esperasse algo, como se esperasse a lua minguante crescer até ficar cheia, estava ela, Laila, a dama da noite. Ela sabia muito bem que a lua minguante não encheria em uma noite, assim como ela sabia que a lua nova não aparece e nem precisava aparecer, pois Laila a via mesmo assim. Mas imaginou a lua se enchendo aos poucos enquanto a noite se aproximava cada vez mais, deixando o púrpura para se aproximar o negro que chegava sempre majestosamente. Ela riu consigo.

Então imaginou mais, imaginou que o negro da noite era como a maré do mar crescendo como um manto e vai se aproximando, em lentidão, trazendo a melancolia para uns, medo para outros e admiração em outros. Mas tem aqueles que não percebem a noite chegando, quando veem, já está lá e, assim, perdem o momento mais magnífico de um dia. 

A medida em que a noite se aproxima abrindo espaço pelo céu, até então em tons quentes, arrasta seu vestido negro cheio de diamantes que irão estrelar o céu trazendo consigo um regador de luz para encher a lua crescente, pois já estava na hora de mudar seu humor. 

Laila se lembrou de quando era pequena. Não sabia ao certo em que fase da infância passou a olhar o céu todas as noites. A lua sempre trouxe uma explosão de efeitos em seu corpo quando começa a aparecer tímida para, então, brilhar. A lua precisava de Laila e ela, da lua. 

Laila carregava a lua em si, durante o dia. Ela nasceu em noite de lua nova, a parteira pediu para sua mãe se concentrar em algo e respirar fundo durante o parto. A mãe quis olhar a lua, correu os olhos pelo céu e percebeu que ela não estava lá, então a menina nasceu, a lua que sua mãe procurava. Já chegou ao mundo exaltando perfume de flores. "Essa menina tem cheiro de jarmin estrelado" disse a parteira, "não", disse a mãe, "tem cheiro de dama-da-noite". Assim seu nome foi escolhido: "escura como a noite", "beleza da noite".

Para verdadeiramente contemplar a lua, Laila sabia que é preciso algo a mais, é preciso desprender-se de si, esquecer-se, esvaziar-se e pensar infinitamente como o céu. Era preciso ver com olhos de lua. A lua a olhava e ela olhava lua e assim se ligava as duas Lailas, as duas belezas da noite. 

(GB - 17)

Com/pulsão

Algum dia
O próprio vício vai engolir,
Digerir
No querer regorgitar
A acidez que consome
Em compulsão.

Não pertencer mais aos próprios poros,

Há espaço demais,
Há buracos demais,
Há pele demais
Engolindo os ossos.
O maciço se faz 
E a translúcides 
Some da superfície espessa.
Onde está dentro de si?

Na busca de sair de novo para fora

Abrindo essa camada estranha,
Acaba por abastecer ela ainda mais.
Colocando pra dentro
Dentro
Dentro
Dentro
Em um ciclo com pulsão
Compulsão.

Enquanto o mundo grita

Compulsivamente 
Menos 
Menos
Menos
Até você sumir.

(GB -19)