quarta-feira, 29 de abril de 2020

Fim-Fim

Fim-fim
Fim-fim
Anunciou o terminar do dia.
E o pôr-se de si
Fim teu ou de mim?
Passarinho que não se pode caçar.
Encarnação caiçara do Saci,
Caos que anuncia o fim, 
Foi enviando por Oyá, eu o vi
Ou melhor, ouvi
Já não sei mais
Se sobrevoando o infinito de Yemanjá
Quando veio cantar pra mim
Que há coisas pra se deixar no mar
Que o sal vai transmutar
Mas também há cantos que precisam avoar.
O que quer dizer com tanto fim?
Limita no não limite do seu sobrevoar.
Não acredito nas sereias
Mas o ouvi cantar pra mata
Seu canto e encanto, a retrata
E me confundiu as beiras
Me raptou inteira
Até não ter mais pra onde ir
Hipnotizada, cheguei ao fim
Rodeia e rodeia
Já não sei mas o que é periferia 
Margem de mim
Me misturei com teu canto
Me misturei com o voar
Mata ou mar?
Já não sei mais onde me leva.
Fim-fim
É ele dizendo que há coisas pra ficar no mar
Sair de si
Até o corpo não ter mais fim.
Me contou que fim é caminho
Fim é potência
Quando é chegado
Tudo o que o que podia ter sido foi feito
Abundância.
A partir do fim tudo pode surgir
Fim é não é limite
É o entre do que se foi e do vir a seguir,
Seguindo vôos e sacis
Até o começo de si.

(GB - 20)

segunda-feira, 27 de abril de 2020

VIRUS

As definições de vírus foram atualizadas: o CAOS foi instalado em algum momento de distração, fazendo o sistema operacional entrar em colapso. Fazendo o sistema olhar pra si mesmo. Novas plataformas surgiram, mas quase nada deu conta, o computador já estava superaquecendo: ambiente perfeito para a entrada do vírus. Entrou por um lugar que ninguém percebeu, foi tomando conta, dando bug em um programa de cada vez, começando pelos mais antigos. O silêncio se instaurou. Muitos programas ficaram pra trás, vários perderam sua função no sistema, esses ficaram perdidos, outros, readaptaram-se. Precisou-se fazer uma análise sintática, a área de trabalho teve que ser alterada, os programas tiveram que ser atualizados, usar adaptadores. Precisou-se criar redes em que um programa alimentasse os dados do outro, convertessem os dados transmitidos, unificando os dialetos. Todos se retroalimentando. Assim eles recuperaram dados da memória RAN que haviam sido perdidos, lembraram que fazem parte do mesmo sistema, que todos os programas são essenciais para o sistema funcionar e que era essencial que se comunicassem entre si. Perceberam que estavam funcionando de forma automática nas definições de fábrica, sem se atualizarem, que estavam desgastando o tempo de vida útil dos hardwares que os abarcavam, que estavam sobrecarregando a placa-mãe. Não adiantava fugir. Os mais variados tipos de programas estão no mesmo computador, inclusive o vírus. Ele faz parte do mesmo sistema agora. Na verdade ele sempre esteve lá. E só há uma escolha: ou usar o antivírus que o criador do próprio vírus fornece e tudo volta a ser como era antes, o sistema falhando aos poucos, aquecendo, aquecendo até aparecerem outros vírus cada vez mais fortes, ou todos os programas se atualizarem, trocarem seus dados entre si até que a rede se fortaleça e coexista com o vírus. Até que ele mesmo passe a ter uma função dentro do sistema.

(GB - 21)

Manto

Bendita sois vós entre as mulheres.
Bendito o fruto do vosso ventre
Que por vezes escorre em vermelho
E outras vezes escorre em voz
Chorando o mundo.
Santa que não tem voz não salva ninguém.
Santa que não pode ver não ilumina ninguém.
Mulher virgem não pode parir ninguém.
Das Marias, eu prefiro as Magdalenas,
Aquelas que vieram da Torre de Magdala.
A Torre: A Casa de Deus,
Esse tal cujo filho não a assumiu como esposa,
Porque ela é ruptura, caos
E mostra que ser profana é sagrado tanto quanto santa.
Um manto só se faz verdadeiro quando é por ela tecido.
Se não for, aprisiona.
Santificadas sejam aquelas que têm escolhas.

(GB - 21)

Casulo


Olhos de câmera fotográfica 
Busca sedenta por imagens. 
Capta cada canto desconhecido da casa 
Tenta se surpreender com algum novo 
Pra lavar de novidade a janela da alma. 
O corpo ocupa o espaço como se ocupasse a si mesmo, 
Meu corpo se confunde com a casa, 
Já virou um móvel, 
Parte dela. 
As narinas anseiam cheiros diferentes, 
Temperos novos
Flores
Rua
Chuva
O cheiro da noite. 
Enfio a cabeça pra fora da janela 
Respirando como quem sai do útero. 
Parece que tudo vibra mais do que antes. 
A luz do pôr do sol
As cores
O sol penetrando os poros da pele
O olho no olho que já virou raridade
O toque... 
Investigo o corpo como investigo a casa, 
Tento mapear meus ossos 
Sinto minha pele 
Como quando me deito em um canto da casa 
Nunca habitado antes procurando o sol. 
Descubro posições,
Maneiras de ocupar o espaço, 
De ocupar a mim mesma. 
De habitar meu corpo 
Enquanto sinto o habitat como lar. 
Estar em mim tanto quanto estou na sala de estar.
As cores de fora são mais nítidas,
Os cheiros de fora são mais fortes.
Tento habitar meu corpo na carne
E habito meu hábito na casa,
Habitando os sentidos apenas no estar
Pra cabeça pairar por onde ela quiser.

(GB - 21)

Centelha

Meio, caminho, estrada,
Canal, antena, tubo cósmico,
Entram-me inspirações,
Devaneios,
O divino.
De meus poros que transpiram,
Flores nascem.
Natureza fértil encarnada,
Tubo de ensaio da criação,
Transmito,
Antena de vibração.
Recebo e vibro
A criação.
Divinção que aqui se prontifica,
Presentifica,
Personifica,
Santifica,
Materializa na não-matéria terrestre:
Abstração subjetiva
Da cognição.
Canal incendiário
Cheio de graça
Bendita a sua voz. 

(GB - 21)

Incêndio

Você me assusta
Não sei se tô cada vez mais perto ou longe.
Nem sei nem se quer se estou,
Você não faz sala pra quem quer um estar em ti.
Não sei se cada vez me perdendo ou me descobrindo nessa confusão aí.
É tipo espelho quebrado, 
Como um quebra cabeça de trechos que não sei se são seus ou meus.
Você é perigoso,
Tenho medo dessa escuridão. 
Ela corrói, estranha.
Queria dizer que 
Só queria pousar de leve nas tuas águas,
Não preciso nem mergulhar se não quiser.
Eu sei que carrega água,
Mesmo sendo terra e fogo.

Ondas. 
Eu vi como elas se comportam diante de você.
Mas insiste em ser vulcão que passa abrindo meu chão, 
E eu desabo e caio em lava,
Mas essa não lava
E nem conduz, 
Cega.
Seu presente estar, mesmo sem perceber,
Sai assim atropelando tudo, 
Ofuscando tudo,
Me deixando vertiginosa,
Fazendo eu tropeçar em mim.

Teu gesto contido grita dentro da minha cabeça,
Como se me lesse.
Inteiriça.
Sabe da minha juventude,
Pobre ingenuidade,
Pobre, como folha em branco.
Acredita mesmo nisso?
E age nessa inquieta indiferença constante.

A magníficencia do teu mistério
Que você eleva com tua lua
É milimetricamente calculada por teu sol.
Um leão castrado virgem.

E de tanto saber o perigo que causa
Bailarina inquietudes em mim,
Atraindo
Repelindo
Fugindo
Fingindo
Mas daí me olha
E quando olha...
Me eriça os todos os pêlos
E são essas migalhas que se acostumou a dar,
Como se eu fosse roedora 
Buscando
Buscando 
Buscando
Algum sinal
Para além da pele,
Pois por dentro, o fogo caótico explode com tanta vibração
E você até tenta apagar ele com sopros,
Mas não percebe que assim acende mais faíscas em mim?

Eu sou de ventania.
O ar alimenta o fogo.
E eu conheço muito bem essa magia.
Mas você não se deixa nem um pouco pra eu te incendiar.
Só quero lambusadas,
Amêndoas,
Madrugadas,
Me sentir etílica,
Até pegar teu fogo.

Mas você não abre,
Se fecha na tua muralha de terra velha.
Mesmo sabendo que lá em baixo ela borbulha.
E eu sinto as explosões das bolhas em mim.
Me assume.
Ou sumiço.
Sumo e é isso.
Em suma,
Só não quero mais é sumir pra mim mesma
Perdida dentro da ideia que fiz de ti. 

(GB - 21)

Caranguejo

Caranguejo
Me pinça e puxa pela calda que criei,
Me leva para as profundezas.
Caranguejo me leva
Dentro do meu barco de guerra
Ao meu deserto particular,
Pântano escuro onde a lua mora parada
Espelhando tudo de mim.
Eu nua na margem, 
Nua das cascas
Nua das penas,
Nua da carcaça,
Arranquei tudo no desfiladeiro.
Um caranguejo emergiu das profundezas,
Me levou pra nadar,
Me pediu para eu dançar com as dores.
Disse que sou rio de água salgada,
Que desmancho pelos olhos embotados,
Enluarados...
É minha forma de transbordar,
É minha medicina profunda,
Às vezes, profana.
É a transparência materializada,
Que se lança e jorra pra me mostrar tudo o que menti e omiti pra mim mesma.
Coração pulou feito sapo no pântano,
Ele pula e não para de coaxar,
Pula e não para de coaxar.
Eu tento silenciá-lo mas é mais forte que eu,
Ele me chama pra entrar.
A água é turva,
Reflete tudo
E eu só vejo a mim mesma
E um monte de casas que construi ao redor pra esconder o rio.
Quanto mais eu entro, mais elas desmoronam,
Vão se tornando escombros
Enquanto algumas se reconstroem mais fortes.
O sapo pula, não para,
O nome dele é paixão,
O nome dele é amores,
O nome dele é família,
O nome dele é infância,
O nome dele é ilusão.
O caranguejo me arrasta e eu não tenho escolha,
Só me resta mergulhar.
Profundo.
Até eu me misturar com essa água
E ela tomar conta de mim
Até eu virar caranguejo. 

(GB - 21)

Óvulo

O "se cuida, fia!" é imenso, transborda. Se cuida menina. É quase mais que um "te amo". É passada de uma geração para outra por mulheres que cuidam umas das outras. É a despedida para alguém que saiu do seu corpo ou do corpo que saiu do seu corpo e agora tá indo pro mundo, carregando um tanto de você também (e você mal sabe para onde exatamente, mas não importa) enquanto um outro tanto fica. Porque ela é a sua mais nova primavera. Você já se carregou um dia e sabe o quão difícil é se manter em pé. Alguém sempre precisa estar lá pra te dizer "se cuida". Olhe pra si, acolha a si, cuide de si e ame a si, assim como eu te amo. Carrega contigo um pouco desse amor que te dou e o entregue para ti mesma, pois aí também tem um pedaço de mim. Que sai e vai. Que voa com o vento. Se cuida, minha filha. 

(GB - 21)
Nos dias de chuva, é mais bonito o outro lado da rua
Repete esse poema
Eu ri disso
E experimentei
Meu calçadário na rueta petrolata
Trupica bebidando no buraco ao contrário
Caí 

(GB - 21)

Sangue Severino

É em tuas mãos que eu vejo a secura da terra, que resseca em si a força do trabalho. Mãos alquimistas, artesãs, autodidatas, que aprenderam a entalhar caminhos por elas mesmas. As solas dos teus pés são entalhadas pelo solo calejado que percorreu distâncias em retirada por desertos de cactos e labutas. Teu olhar longíncuo entre pálpebras semi-cerradas e enrugadas me mostram a imensidão da vasta terra, terra também cerrada, onde percorre uma brisa mansa carregando pó. É o olhar severino de quem que já encarou tantas vezes a morte que já se acostumou com ela, já sabe reconhece-la até pelo cheiro. Sua voz ainda traz um sotaque de terras distantes, voz nordestina e interiorana, quase esquecida e abafada, mas presente. Ela me apresenta o canto sertanejo mais profundo de um baião, carregador e contador de histórias, violas e foles. Sua postura é inabalável de quem aprendeu até a repousar ereto, exibindo a fortaleza resistente das raízes densas e seguras do nosso passado. Está sempre presente. É índio, negro, ibero-americano. Dessa terra. Você é Oxossi, Ogum e Oxalá, caboclos, índios e juremas dançam regendo sinfonias ao redor de você, por mais que você os escondam atrás de uma cortina cristã nos pôr-do-sois de todos os sábados, jurando que são anjos. Eu ouço seu coração tocando macumbas, tambores e agogôs. Suas bochechas rosadas são marcas que um sol ardente, intolerante e irreverente imprimiu na pele. Tua pele é terra seca. Teu jardim hoje, é repleto das folhas e frutos que nascem da descoberta de uma terra nova, onde cai água do céu, lavando todo o passado desnutrido e faminto, quando a única saída era sair, sem olhar pra trás. Você é intersecção fonteiriça, ocupação rasteira de raízes profundas nos desertos,  rios e comunidades desse país. O Brasil a ti pertence, e você à ele. Eu conheço meu país ao olhar pra você. É outono e você disse "agora é a época das folhas se despedirem e das árvores trocarem de roupa". Sua calma é a presença personificada do tempo cerradeiro, do tempo de um lugar que espera sempre o tempo chegar. Espera. E o tempo vai consumindo sem parar, enquanto não chega.

(GB - 21)

gitano

há tempos não escrevia, até tu chegar mansa de plenitude. cheia de não querer poemas, por estar repleta das poesias que tens, que és e que recebes. me ensinas a ver-me na calma que também abrigo. me ensinas a ser mar manso, cantando a paz para os abismos. tu es un árbol lleno de ojos que me miran. me acolhes com tus ojos de felina da costa. desse jeito arisco, tu pões em risco minha alma de perder as estribeiras em meu próprio âmago. tu me mostras uma nova juventude. uma primavera madura, dessa vez mais calma, que estou aprendendendo a colher e acolher do pé. é a primavera de te querer em ti, pousada em ti, intacta, e cuidar para não invadir teu ninho. nem mesmo com palavras. espero um convite para entrar. quem sabe um dia. se é que o tempo em ti beira como em mim. tu me ensinas que o silêncio é a voz mais preciosa do ouvido. te escuto, como me escutas. me ensinas a me escutar quando falo sobre as casas de mim. escrevo o que há tempos não escrevia. sobre paixão. sobre ondas. sei que tu navegas muitos outros em teus olhos. vi que embalas otras brujas en tu voz cantante. e eu, que também me encontro perdida nessa maré, eu preciso de palavras para emergir. mesmo sabendo que tu não precisas ouvir-me, pois também está mergulhando em ti. e não me importa quantas paixões te carregam nelas ou quantas casas tu inundas quando pousas teu olhar. tu me ensinas a ver-te e a ouvir-me. e isso já é primavera. 

(GB - 21)
Vulnerável ouço vultos
Pelas frestas o uivo do vento
Soam as arestas
Arrepiando aflições em mim
Relembrando velhos escombros
De ecos sem fim
Palavra quieta
Atónita noite
Acordo indiscreta
Requer mais um coite
Foice
Navalha na pele
Sangue
Manter a fé é um trabalho de deuses 

(GB - 20)

Nirvana

Aperta o botão  
E me acende a luz do mundo
Botão é maçaneta 
Que abre as portas
Do prazer
Pecado é não ver que é sagrado
O princípio pra gerar vida

Entre 
Mas não fique
Não invada
Espera tua hora
Toca a campainha
Roça na maçaneta 
Botão mágico
Da minha ***eta 

(GB - 21)

À Escondidas

Uma dose discreta
Não concreta
Incorreta
Secreta
De adrenalina
Me penetra e injeta
Oxitocina
De dentro, me descobriu inteira
Endorfina
Me abro
Me entrego
Me estrago
Por mais um trago
De gota em gota
Alimenta o fogo fátuo que ninguém viu
Como árvore lá fora que caiu
Ouviu?
Pergunto o que seratonina
Mas sem querer futuro
Me dá só mais um presente
E mais um
E mais um
Gota a gota no meio do caos
Pra sentir bem
Pra me entregar bem leve
Dopamina 

(GB - 21)