segunda-feira, 27 de abril de 2020

Sangue Severino

É em tuas mãos que eu vejo a secura da terra, que resseca em si a força do trabalho. Mãos alquimistas, artesãs, autodidatas, que aprenderam a entalhar caminhos por elas mesmas. As solas dos teus pés são entalhadas pelo solo calejado que percorreu distâncias em retirada por desertos de cactos e labutas. Teu olhar longíncuo entre pálpebras semi-cerradas e enrugadas me mostram a imensidão da vasta terra, terra também cerrada, onde percorre uma brisa mansa carregando pó. É o olhar severino de quem que já encarou tantas vezes a morte que já se acostumou com ela, já sabe reconhece-la até pelo cheiro. Sua voz ainda traz um sotaque de terras distantes, voz nordestina e interiorana, quase esquecida e abafada, mas presente. Ela me apresenta o canto sertanejo mais profundo de um baião, carregador e contador de histórias, violas e foles. Sua postura é inabalável de quem aprendeu até a repousar ereto, exibindo a fortaleza resistente das raízes densas e seguras do nosso passado. Está sempre presente. É índio, negro, ibero-americano. Dessa terra. Você é Oxossi, Ogum e Oxalá, caboclos, índios e juremas dançam regendo sinfonias ao redor de você, por mais que você os escondam atrás de uma cortina cristã nos pôr-do-sois de todos os sábados, jurando que são anjos. Eu ouço seu coração tocando macumbas, tambores e agogôs. Suas bochechas rosadas são marcas que um sol ardente, intolerante e irreverente imprimiu na pele. Tua pele é terra seca. Teu jardim hoje, é repleto das folhas e frutos que nascem da descoberta de uma terra nova, onde cai água do céu, lavando todo o passado desnutrido e faminto, quando a única saída era sair, sem olhar pra trás. Você é intersecção fonteiriça, ocupação rasteira de raízes profundas nos desertos,  rios e comunidades desse país. O Brasil a ti pertence, e você à ele. Eu conheço meu país ao olhar pra você. É outono e você disse "agora é a época das folhas se despedirem e das árvores trocarem de roupa". Sua calma é a presença personificada do tempo cerradeiro, do tempo de um lugar que espera sempre o tempo chegar. Espera. E o tempo vai consumindo sem parar, enquanto não chega.

(GB - 21)

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